Fazer

Pássaros cantam, e os seus sons percorrem a minha mente trazendo de volta todos os dias que os ouvi cantar.

Assim nessa distância da memória convivo comigo mesmo, quando me vejo só a andar e sinto os pés doridos, quando o sol arde bem no meio do céu e todo o dia é luz e secura. Assim nessa distância ouvida acompanham-me os vagos ventos da nostalgia, para dar frescura a um dia que passa como os outros, e perde-se entre tantos outros que já passaram.

Pois se me ver a persistir contra o calor e contra a dor, melhor que o faça sentindo que vivo, em cada instante e não em intervalos apenas. Que sou além de corpo que se move, e o meu movimento além do acaso. E no fim chegando a noite, cansado, descanso melhor.

São poucas as vezes que descanso realmente... Vejo demasiadas horas a consumirem-se pelo dia fora, pela noite fora, até que o sono me tome, para acordar uma outra vez, numa outra manhã, passivo uma vez mais, e baralham-se os horários, e consome-se o tempo.

As coisas para além de mim

Para além da janela, enquanto a noite fora descansa, oiço um grilo contra o silêncio estabelecido.

Para além da janela um som invade o meu ser, estabelecendo-se neste vazio escuro, e todo o peso da alma é posto de lado, carga sobre o chão e eu deitado. Mesmo descansando na noite, a vida dispõe-se acordada para aqueles que se dispõem a ouvi-la. Acompanho-a, levo-me, por esse vácuo para além dos céus, e deixando-me levar liberto-me, partilho da sua liberdade e do seu centro, bem no centro do meu ser. Absoluto este ritmo que oiço. Não me deixa a alma dispersar-se em demasia – um som que chama todo o silêncio para um ponto e me diz apenas, as coisas existem e tu estás nelas.

Janelas

Por esta janela vejo o mundo a moldar-se perante mim. Cada palavra que cá ponho e a paisagem expande-se no meu campo de imaginação. E nem sempre é uma paisagem só para mim. Outros nela também têm algo para construir. Não me sinto só ao vê-la, vejo um mundo que não me pertence apenas. Posso apanhar em qualquer lado as palavras que não são minhas.

Mas erguido sempre na parede recorta-se o retrato do real. Recordando-me dele, recordo-me que é realmente uma outra janela, como tantas outras, que ligam o meu mundo com o mundo. É no outro lado onde ando, onde sinto o corpo, e sentindo-o apercebo-me que vivo, e apercebo-me do meu espírito. Só consigo erguer o meu sonho, o meu mundo, na base sólida da realidade; senão desvanece-se sem direcção nem sentido.

Amanhecer

Floresce uma vontade em mim de respirar a vida uma vez mais, agora que me deixei libertar, e sinto o sol, e sinto o ar.

Neste vazio escuro da minha mente, agora limpo e livre, desabrocha uma flor, e dá cor. Vermelhos vivos, amor que esvoaça e ainda me apanha, chama brilhante, branca, um sorriso que me desperta quente como o sol. Todo um despertar cheio de energia para um novo dia!

Pôr-me na palavra

Ponho toda a minha razão de ser na palavra, pois se não o fizer não me dispo tão cedo desta melancolia. Dias há em que uma pessoa está em harmonia com tudo o que a rodeia, onde tudo parece correr no sítio certo, até que algo falhe e tudo desabe. Há dias em que as coisas dão uma reviravolta e se põem contra a ordem a que lhe sujeitamos, e vemo-nos uma vez mais baralhados, a pensar na solução, ou a pensar no que correu mal: que detalhe minucioso falhou onde não demos por tal, mas sentimo-lo.

Esperava eu muito do dia? Contava muito, decerto que sim, que a minha ansiedade se satisfizesse para me manter descansado. E para me manter confiante, para então poder manter o meu optimismo. Sim, quando uma pessoa está satisfeita consigo própria, pressente que algo de bom pode resultar disso, principalmente por acção dela própria. E agora, não me encontro assim... Dou graças à música, por me embalar! Ouvindo-a, só faltava mesmo desabafar, e então me vejo a faze-lo. Ponho toda a minha razão de ser na palavra. Faze-lo mantém-me confiante, devolve-me o optimismo. Simplesmente por faze-lo, simplesmente por concretizar algo que me faça sentir bem e poder dizer que fi-lo por conta própria, porque fui capaz.

Mas na verdade bem preferiria ter uma outra pessoa para me confortar: para ser a minha força. E ver-me sem ela, e sem esperanças disso alguma vez acontecer, põe-me melancólico. Procurei ultrapassar isso com toda a novidade que este dia traria, e realmente trouxe. Mas um momento novo e agradável pouco me serviu, agora, vendo-me sozinho, para arrancar de mim aquela sensação que já me vai entranhada. Nada mais foi senão uma mera distracção – um intervalo – no que se passa em mim. E como já o previa, de nada me resta senão aceitar a realidade, e partilha-la com o tempo para que este ma leve, a aceitação, daqui para fora.

Outra vez o tempo. Sempre o tempo. Estou farto de esperar. Quero continuar a ver o tempo a passar, quero continuar a viver, mas que estejamos em harmonia um com o outro. Talvez é isso. Não o que nos rodeia, mas o tempo. Preciso de estar bem com o tempo, pouco me posso queixar de tudo o resto em meu redor! Tudo… excepto aquela pessoa pela qual o meu tempo se tornou num detrimento. Não lhe tivesse centrado todo o meu ser nela, e o meu tempo não rondaria tanto a sua presença, ou a falta da mesma. Tendo-lhe depositado muita da minha confiança, do meu optimismo, a base da esperança que me escraviza, e vejo assim, coxo, aleijado, o meu espírito.

Que alguém outra me leve. Talvez. Ou me leve eu próprio, quando o tempo voltar ao seu rumo normal e ajudar a levar-me daqui para fora.

Afinal quero o quê, ser levado eu, ou ser levada de mim a ideia que terei de aceitar as coisas como estão? Qual dos dois casos mais me liberta? Não, não: afinal, que quero eu do tempo? Dependo-me demasiado dele.

Para me libertar mais ainda a partir da palavra, escrevo também neste texto um pouco de poesia minha:

Sou vento e posso voar. Já antes voei. Mas o peso dos meus ombros mantém-me rente à terra. Pesado, para voar, só quando me é dada a devida oportunidade para ser leve. Pesam-me os actos, pesa-me a voz, e não voou-o. Pesa-me a timidez, e pouco me vejo em cima. Que o tempo me leve mais vento: se não sou levado, não me deixo ir contra o meu peso. Mas se o sou, não me posso virar para o rumo que desejo…

Tenho uma carga nas minhas costas, e falta-me o exercício com a mesma. Preciso de andar mais, independentemente de quaisquer percalços. Para então poder correr, para então poder voar.


Veremos que resposta poderei vir a dar a isto, um dia mais tarde.

Desistir

Prosseguir, custa. Chegar a algum lado requer esforço, e esforçar é ir em frente, é conhecer território novo, é descobrir que é aprender que é melhorar. Tudo o que custa tende a valer a pena. Independentemente dos erros cometidos. Principalmente pelos erros cometidos.

No caminho em que prossigo existe um indicador. Aponta para dois lados.

Para desistir, vire ao lado e chegue a nenhures. Descanse aí, alternativa fácil para quem não insiste em dar o próximo passo.

Para desistir, chegue ao final do percurso e mude para outro. De nada serve insistir em andar onde já não dá para andar mais. Largue o caminho pelo qual se habituou. Custa, alternativa difícil, mas como tudo o que custa valerá a pena. Só não desista é de andar.